O outro lado do aventureiro Entrevista ao alpinista João Garcia, revista Must (mensal, sai com o Negócios); Fevereiro 2017. A Must foi ao encontro do alpinista João Garcia e mostra-lhe a influência dos irmãos músicos, a liberdade com limites dada em casa e os primeiros passos do aventureiro que se tornou num MacGyver da montanha, não acredita em deus e alimenta um modo de vida livre mas com objectivos constantes. João Tomé Aos 49 anos e a poucos meses de fazer 50, o lisboeta João Garcia continua apaixonado pelo alpinismo e, embora já não faça os caros e mediáticos cumes de oito mil metros, estreia caminhos inéditos e mais difíceis nas maiores montanhas do mundo e diz-se livre. Depois do acidente mais grave, em 1999 – foi no Evereste que perdeu o amigo Pascal e também as pontas dos dedos e do nariz – cumpriu, 11 anos mais tarde (2010), o sonho: tornou-se no 10.º alpinista no mundo a conseguir a proeza de escalar as 14 montanhas com mais de 8000 metros sem o auxilio de oxigénio artificial. Hoje, continua a sentir a necessidade de voltar sempre à montanha – “sinto-me doente é se não voltar”. Como nasce o aventureiro alfacinha, que em Lisboa só tem as colinas? Como começou a paixão pela escalada? Nasci em Alvalade e fui logo viver para os Olivais, que era um terreno de aventura fantástico, com o Vale do Silêncio a ser território dos índios (alguns marginais) em que quem se aventurava era roubado (risos). Era um miúdo de oito ou nove anos, quando saía da Avenida de Berlim para ir para a zona da Expo. Aquilo era um parque de contentores, indústria pura. Esses contentores que se amontoavam em quatro e cinco em altura foram as minhas primeiras grandes escaladas, já pelos 12 anos. Eram as minhas fugidas de casa com os amigos. Já era mais destemido que os outros nesta altura? Era um dos cabecilhas lá do gangue que subia aos contentores e também a andaimes. De vez em quando as coisas corriam mal, caia dentro do lodo em maré baixa, onde é hoje o Oceanário. Ficava enterrado no lodo até ao pescoço e depois vir para casa assim... já choras de nervoso porque a tua mãe não vai ficar contente. Felizmente nunca parti ossos. Acontecia mais mazelas nas chamadas guerras com os índios, aí sim vinha uma pedra à cabeça e pronto, ficava com marcas. Lembro-me que quando fui para a tropa e me raparam o cabelo eram só cicatrizes e marcas. Usava a zona da Expo já como um explorador, que explora todos os recantos? Claro! Reconheço agora que já na altura tinha alguma atitude de explorador, de vontade de ir mais longe, de descobrir o que está ao virar da esquina. No fundo é a essência do alpinismo é fazer essa exploração. Ter essa vontade de saber mais. E olhando para uma montanha, há o desejo de saber como é estar lá em cima? Nem é tanto a busca da sensação de como será estar lá em cima, é mais o caminho. Como é que eu chego lá? Eu olho para uma montanha e em vez de focar-me no cume dou atenção aos caminhos alternativos. Quero subir por caminhos novos e traço novas linhas imaginando se é possível. Depois é o tirar fotografias, voltar para casa, analisar, tentar contagiar o entusiasmo com um colega e por aí fora. O que dá mais gozo é fazer coisas que nunca ninguém fez, ao ponto de não sabermos inclusive se é possível. O chegar lá acima, abstratamente não é nada. É um ponto de retorno. Lá em cima sinto-me preocupado porque ainda falta outra coisa desconhecida que é, como vou sair daqui para baixo? Onde é que vou conseguir fazer rappel? Que material vou ter de abandonar? Quanto é que isto me vai custar (porque temos de abandonar algumas vezes o material)? Ou seja o pensamento é em tentar minimizar os danos. Como aventureiro, quais foram os marcos determinantes? Houve vários. O escutismo abriu-me este gosto pelo meio natural mas depois quis dar um salto e aprender a escalar em rocha. Foi na Serra da Estrela que se abriu esse mundo. Fui lá sozinho de bicicleta aos 15 anos para participar numa iniciativa do Clube de Montanhismo da Guarda e isso mudou a minha vida. Depois há outro marco, que foi o ter ido trabalhar para a Bélgica aos 23 anos como militar das Forças Aliadas. Estava habituado a fazer Lisboa-Serra da Estrela, sete horas de autocarro, e dou um salto gigantesco em que passo a estar a sete horas de carro para ir tentar subir o Monte Branco num fim de semana. É bastante violento na adaptação à altitude. E houve aqui outro marco de evolução que não é tão lenta e gradual quanto seria aconselhável mas para mim foi óptimo. Depois há um salto gigantesco, que foi ir com as primeiras expedições a cumes de 8 mil metros no Nepal. A primeira em 1993, depois em 1994 mas aí eu ainda era um aprendiz de ‘feiticeiro’. Depois foi em 1996 que fui pela primeira vez ao Paquistão na primeira tentativa ao Nanga Parbat, também de oito mil metros, em que os polacos que estavam comigo eram tão aprendizes quanto eu. E aí eu já me sobressaio, já não sou um seguidor passo a ser o principal alpinista – lead climber – e tudo isto nos dá auto-confiança, preenche o ego e dá-me alegria. Há uma essência de criança nesta profissão de ir à aventura, explorar? Há aquela frase que diz que a diferença entre as crianças e os adultos é o preço dos brinquedos. Mas a criança com esta vontade de explorar genuína está cá e mantém-se. Tenho uma definição concreta de motivação: arranja um objectivo, define um prazo e à medida que te vais aproximando vais ficando apertado e tens de te preparar e motivar para o objectivo. Depois há coisas como, corpo são, mente sã. Esta vontade com disciplina em paralelo faz a máquina funcionar. Sempre tive esta vontade de criar um objectivo e concretizá-lo. No início era só lá no bairro, depois era em Portugal, depois alarguei para os Alpes e continuei. Não quer dizer que já tenha feito tudo, longe disso. Desde que terminou em 2010 o projecto épico dos 14 cumes, hoje em dia é guia de trekking mas continua a fazer escalada? Sim, claro. Uma das maneiras de conseguir continuar a alimentar este bichinho é fazer mais com menos. Já que estou no Nepal a trabalhar em trekking, a levar grupos a visitar estes vales fantásticos, aproveito que já estou com o organismo adaptado à altitude e fico mais uma ou duas semanas e vou brincar com os meus projectos pessoais que envolvem fazer vias inéditas e mais difíceis tecnicamente, a pique. Agora vou voltar a fazer isso em Maio com um amigo espanhol. Fica mais barato (ir aos 8 mil metros implica licenças de 50 mil dólares e pelos seis mil metros são só 500) e perco menos tempo. Um dos luxos da sociedade actual nem é o dinheiro, é o tempo! Isto obriga a um planeamento grande, para rentabilizar o tempo. Tenho as minhas temporadas das palestras motivacionais, das actividades invernais, a temporada de primavera no Nepal, onde já estive mais de 40 vezes – já lá passei quase quatro anos da minha vida. Não paro mas consigo ter um modo de vida livre. Continuo apaixonado pelo alpinismo e vou pelas reais motivações, intrínsecas e não extrínsecas. Hoje em dia parece que o pessoal vai de fim de semana para a neve e gelo, com as cordas e tal, quase só para arranjar conteúdo para o seu Facebook. O ano passado teve mais aventuras de trekking do que escalada? Sim mas não deixam de ser aventuras. Ao enquadrares outras pessoas, sobe a responsabilidade mas há uma série de coeficientes que não controlas. Não sabes o que vai dentro da cabeça da pessoa. É a eterna frase de que isto não são aventuras de homens a conquistar montanhas, são aventuras humanas nas montanhas. Muitas vezes nem as pessoas sabem como vão reagir na adversidade. Depois há necessidade que temos quando gostamos muito do que fazemos, por querer semear para ver crescer. Tento educar na perspectiva de que além de ser importante fazer as coisas, é importante a maneira como fazemos as coisas. Encontrou alguma inspiração nos pais ou irmãos? Os meus irmãos – são gémeos e três anos mais velhos – foram das pessoas que mais me inspiraram. Não tiveram um grande apoio dos meus pais para serem músicos mas também não tiveram travão. Se eles conseguiram ser artistas do pop/rock nacional e até foram profissionais, eu sentia abertura para ser o que queria. Tinha esta vantagem de ser irmão mais novo e o que os meus irmãos conseguiam aos 18 anos, eu consiga aos 15 – por exemplo, ir à Serra da Estrela sozinho. Eles começaram na música aos 14. Entre outros projectos, um foi guitarrista dos Heróis do Mar e outro baterista dos GNR durante sete anos. Como é que os irmãos mais velhos reagiam ao mais novo se querer aventurar tanto? Dentro de alguma ignorância e ingenuidade, diziam simplesmente que o puto era maluco. Mas não são só eles, é a sociedade em geral. Acabaram por me ajudar porque a certa altura davam-me trabalho como roadie. Eu sabia montar e desmontar a bateria ou afinar a guitarra de ouvido – também tenho bom ouvido para a música. Nos meus 17 ou 18 anos os fins de semana eram entre ir trabalhar e ganhar dinheiro, ou ir escalar com os amigos e gastar dinheiro. Estas eram as dúvidas existenciais. Na gestão de tempo o que mudou desde 2005, em que encontrou o amor numa expedição em África (foi lá que conheceu a mulher, Inês)? Muda um pouco mas quando ela me conheceu já sabia o que eu era. Nunca houve travões só porque tínhamos casado. Ela também gosta das viagens, gosta quase mais do que eu, e há um perfil psicológico meu, que gosto de ser alfa, tenho uma personalidade forte e um lema intrínseco: não me vencem pelo cansaço. Claro que ter alguém na nossa vida muda sempre, mesmo que não seja radicalmente. Mas sentiu-se preenchido por encontrar o amor? Sem dúvida. Isto a vida se não a partilharmos não atingimos verdadeiramente a felicidade. A felicidade é um caminho que nós vamos percorrendo. Não é um momento em si. Eu sou feliz porque estou a fazer as coisas que me propus fazer, com mais ou menos vitórias, mas estou nesse caminho que escolhi. Nós vibramos também com a felicidade mais próxima. Se a minha mulher está preenchida e viaja para onde quer, eu também estou bem. Na próxima grande viagem em conjunto vamos ao Alasca, em junho, e já estamos a preparar tudo. Será trekking apenas mas tem ursos (risos), o que é um desafio. E qual a ligação com a religião? É cristão praticante? Não sou. Acima de tudo, mais do que cristão eu sinto-me uma boa pessoa mais pelo espírito de escuteiro, da boa acção, de fazer as coisas pelas reais motivações do que pela catequese. Na verdade acho que não acredito em algo superior, sou agnóstico. Para mim os deuses estão cá dentro de nós, seja qual for a religião. Quando estamos aflitos vem sempre aquele, “valha-me deus”, mas a mim só me traz mais humildade e respeito pela montanha, tão bonita e tão perigosa. BREVES O sítio mais frio O McKinley (montanha mais alta da América do Norte, no Alasca), sem dúvida. É um frio húmido em que a sensação real de frio é extrema, mais do que no Himalaia. Refeição mais saborosa Adoro os momos, que é uma espécie de rissol de massa tenra cozido a vapor com um recheio de carne com especiarias picantes e muita cebola. É delicioso. Depois molha-se no molho, ao estilo ketchup muito picante. O jantar pós-escalada mais saboroso Foram muitas refeições importantes após descer. Há um chá, o Butter Salt Tea, tibetano, que se nós bebermos agora vamos vomitar. É um chá preto salgado com manteiga de iaque a boiar. Mas quando desces da montanha e bebes ficas extasiado porque é exactamente aquilo que o organismo pede e sabe bem. Pior refeição em viagem Há vários anos os fogões estragavam-se quando a sopa ia para fora. Entupia mesmo e a loja mais próxima estava a uma semana a pé. Ou seja, comia sopa instantânea, que já é o que é, e crua. Que remédio. Noite mais difícil Em Yosemite (parque americano), em 1996, fazíamos uma via de 24 horas de duração, em que fazíamos escalada à noite. Estávamos pendurados, com o arnês a cortar a circulação nas pernas e a dada altura dou por mim a dormir uns bons minutos enquanto o colega não chamava para continuar a escalar. O local mais bonito São tantos e diferentes. Diria que um dos sítios mais bonitos em que a montanha parece pré-histórica, até pela inacessibilidade, é na Antártida. Lá tens 3 ou 4 km de espessura de gelo e o que sai cá fora é só os últimos 20% daquela montanha. O aquecimento global mais visível Nos últimos 20 anos, no caso do maior glaciar do Maciço do Monte Branco, nos Alpes, já o vi regredir 300 metros e descer 50 metros de altura. Agora tiveram de por umas escadas metálicas com vários lances para se chegar lá abaixo. Isto em 25 anos. O próprio glaciar Khumbu (no Evereste) já o vi abater uns 50 metros. Comments are closed.
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Agosto 2022
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